sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Desatino

Numa noite qualquer, os mortos se levantam de suas covas, leem os epitáfios que se lhes dedicaram, riscam-nos, alteram-nos, desmentem-nos. Assim o cenário de "A Morta", conto de Maupassant.
As inscrições tumulares lembravam "bons pais", "filhos devotados", "comerciantes probos": perfis tão falsos que refutados até por aqueles a quem se referiam. As emendas, por sua vez, revelaram "vingativos, desonestos, hipócritas": verdades "que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra" e de cuja confissão não provém nenhuma redenção, simplesmente porque póstuma.
São uns Brás Cubas, aqueles defuntos, livres que estão das consequências de seus atos. Suas revelações, caprichos - ou alívios de consciência, se muito. Porém, provocadoras.
Fizeram-me pensar na correção que eu faria ao meu epitáfio, caso houvera sido enterrado naquela "cidade dos desaparecidos" e logo após minha provável surpresa com o que disseram de mim.
Até agora, então, - e sem demora nem prudência - algo como:
"Maltratou irmão e mãe, muitas vezes calou-se e, tantas outras, preferiu livros a pessoas."