sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Devaneio

CAPÍTULO XXIX - O IMPERADOR
(Dom Casmurro, Machado de Assis)

Em caminho, encontramos o Imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma idéia fantástica, a idéia de ir ter com o Imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta idéia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo.
Vi então o Imperador escutando-me, refletindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lágrimas. E logo me achei em casa, à esperar, até que ouvi os batedores e o piquete de cavalaria; é o Imperador! é o Imperador! toda a gente chegava às janelas para vê-lo passar, mas não passava, o coche parava à nossa porta, o Imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na vizinhança: "O Imperador entrou em casa de D. Glória! Que será? Que não será?" A nossa família saía a recebê-lo; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o Imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando, — não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos, — pedia a minha mãe que me não fizesse padre, — e ela, lisonjeada e obediente, prometia que não.
— A Medicina, — por que lhe não manda ensinar Medicina?
— Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade...
— Mande ensinar-lhe Medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi à nossa Escola? É uma bela Escola. Já temos médicos de primeira ordem, que podem ombrear com os melhores de outras terras. A Medicina é uma grande ciência; basta só isto de dar a saúde aos outros, conhecer as moléstias, combatê-las, vencê-las... A senhora mesma há de ter visto milagres. Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e ele não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira; mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho?
— Mamãe querendo...
— Quero, meu filho. Sua Majestade manda.
Então o Imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janelas atopetadas, um silêncio de assombro; o Imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: "A Medicina, a nossa Escola." E o coche partia entre invejas e agradecimentos.
Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fértil que a das crianças e dos namorados, nem a visão do impossível precisa mais que de um recanto de ônibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros.

Por mais improvável que fosse a realização da "idéia fantástica" de Bentinho, ainda era ele mais afortunado que eu, uma vez que sua mãe observaria qualquer intervenção do Imperador. Já meu pai não ouviria nem Imperador, nem ninguém, porque não admite nenhuma autoridade.
Contudo - e apesar de não ser criança ou namorado - imagino Mészáros em minha intercessão:
- A Chaui, - por que não a lê? O que é Ideologia já é um esclarecimento. Em seguida, poderia apanhar a Introdução do meu Filosofia, Ideologia e Ciência Social. É leitura para quem já deu seus "primeiros passos" (e outros tantos mais - cumpre-me reconhecer), e que exigirá disposição e atenção para além daquelas costumeiras, com as quais o senhor acompanha os telejornais e revistas. Todavia, provará justamente como não convém se bastar com noticiários. Importa é emendar um passo no outro e não parar de caminhar. Faça isso por si mesmo, sim?
Então Mészáros autografaria meu Para além do capital e partiria, sob a suspeita de meu pai, porém com toda minha gratidão.
Essa minha visão espero que não seja assim do impossível, porque me mortifica ver a do meu pai entre as "caras sem sonhos".