quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Certa incerteza

Elaboro cá rol de planos comigo mesmo, ocupações para as férias recém-chegadas. Quero escrever, mas não me acorre quê.
Vasculhando a memória, atrás de assunto que mereça roubar tempo meu à leitura, encontro, afinal, um digno e desafiador!
Prontamente, valores cristãos em mim subsistentes evocam duras penas para este meu ser que há muito os quer abandonados; fincam duras estacas em volta de meu tema, ao redor das quais estiram arames invisíveis; cercam duras verdes íris dos mais belos olhos deste mundo.
Restolhos de cristianismo! Contudo, não me impedem de prosseguir. Atrasa-me, isto sim, alguma indecisão quanto às minhas intenções com esta postagem. Render uma singela homenagem? Tão-somente brincar com o som das palavras? Tentar?
Desconheço meus propósitos. Castro este texto!

terça-feira, 11 de novembro de 2008

De nova para cheia

Flagrar sua amada Angélica enlaçada por Medoro e os perder, porque feitos de matéria tão "tênue e fugaz" que inapreensível às "manoplas de ferro" suas, roubou a inteligência de Rolando: "algo dentro dele se rompeu, explodiu, acendeu e fundiu-se, e instantaneamente apagou-se-lhe o lume do intelecto e ele mergulhou na escuridão". Assim Ítalo Calvino entrega seu herói à loucura, numa das surpreendentes histórias de O castelo dos destinos cruzados.
Logo na seguinte, Astolfo, incumbido de resgatar o juízo de Rolando, recorre a um adivinho que lhe indica os "campos lívidos da Lua", onde se localizariam "as histórias que os homens não viveram" e "as partículas do possível descartadas no jogo das combinações". Engana-se o adivinho.
A Lua guarda menos histórias não vividas que à espera de quem lhes dê vida. Em vez de possibilidades descartadas, apenas umas ainda desconsideradas.
Dela partem "todos os discursos e poemas" dos quais é merecedora. Nela se encontra o "rimário universal das palavras e das coisas", a partir do qual o poeta interpola "as razões e as desrazões".
A Lua é razão da escrita e desrazão acometedora de cada um a que se apresenta.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Transformação

Apresenta-se menina e menina permanece, até que a conversação abandona a banalidade dos assuntos cotidianos e envereda por recordações amorosas.
O sorriso, aberto e luminoso, cede lugar à figura grave e distinta. Os olhos, antes brilhantes, tornam-se opacos. As sobrancelhas, destacadas quando do sorriso, aproximam-se mutuamente. A menina se converte em mulher, sem que se consiga apontar a mais encantadora.
Ouve, ainda, como a menina, atentas que são as crianças às histórias que se lhes contam. Responde, no entanto, como a mulher, cujos pareceres não revelam senão maturidade e experiência.
As palavras lhe saem meigas, quais as da menina subsistente. Agora, porém, com o prestígio da mulher.
Encerrada a conversa, lembradas as desventuras, a iminência da separação atormenta.
Não se quer se despedir.

sábado, 20 de setembro de 2008

Invasão Bárbara

Quem uma vez sucumbiu ante sua força agora insiste em lhe resistir. Falha ao tentar encobrir suas verdadeiras intenções e acredita ser possível adiar nova cessão. É prepotente ao apostar na constância da investida, e patético ao temer perder a preciosidade que ora afasta.
Aquela tinha suas razões para persistir. Contudo, seu alvo não mais se lhe apresenta tão encantador quanto outrora. Esse, a que se dedicou, a que tanto mais se dedicaria, já não merece seus exaustivos e pacientes cuidados.
Ela, sim, é digna de toda homenagem e zelo, ciente de seu inestimável valor.
Sabe quando lhe é negada devida atenção.
Parte.

domingo, 14 de setembro de 2008

Correspondência

Ao Cair da Noite - Eugênio de Castro

Numa das margens do saudoso rio,
Contemplo a outra que sorri defronte:
Lá, sob o Sol, que baixa no horizonte,
Verdes belezas, enlevado, espio.

-Ali (digo eu), será menos sombrio
O viver que me põe rugas na fronte...
E erguendo-me, atravesso então a ponte,
Com meu bordão, cheio de fome e frio.

Chego. Desilusão! Da margem verde
Eis que o encanto, de súbito, se perde:
Bem mais bela era a margem que eu deixei!

Quero voltar atrás. Noite fechada!
E a ponte, pelas águas destroçada,
por mais que a procurasse, não achei!



Prezado Eugênio,

A margem de lá não sei se me sorri. Não sei nem se a espio assim, tão enlevado.
Porém, contando ou não com o sorriso da de lá, não conto mais com o da de cá, e tenho de deixá-la.
"O viver que me põe rugas na fronte" pode ser que menos sombrio lá se torne. Saberei somente quando chegar.
Não temo a desilusão. A margem que contemplo é belíssima.
E não tenho porque temer águas destroçadoras, pois que a margem de cá se me fechou.

domingo, 7 de setembro de 2008

!

Saber em que pensar. ser verdadeiro, não trair ninguém. falar trivialidades. fazer o que vier à cabeça. enfrentar o pesar. insistir não vale nem convém. o tal do egoísmo permanece um mistério. ser menos ingênuo e mais atento. não se exceder na expressão de sentimentos nem querer impressionar. não esperar do outro a entrega a que se dispõe. aceitar que não há escolha senão perseguir o fim do desejo. expectativa alguma! convicção de que nunca se conhece uma pessoa tão bem que não se possa se surpreender com suas decisões. seguir adiante e transparecer, nunca por inteiro. sorrir e se resguardar. quanto à ternura, que não mais se encontra nos braços em que se encontrava, ficar feliz por tê-la tido até por mais tempo do que se era de esperar, dadas as condições atribuladas em que se a conquistou. não temer ser injusto com ninguém, agora que se parte sem pendências. refúgio nenhum. ler, sim, claro. e sempre! desta vez, não mais para se distrair. escrever, o que se faz de melhor. e publicar, porque há pouco que esconder.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Cinelândia

Os tipos são os mais diversos, descontraídos ou carrancudos, saudáveis ou moribundos, asseados ou imundos, discrimináveis até que se instala o tumulto à hora do almoço, a partir do qual o cuidado se desvia das faces para os pés, nos quais não se quer pisar.
Perambulando pelas imediações da Cinelândia, alcanço a rua do Ouvidor, que, por constar da literatura de Machado, dele faz com que eu me recorde prontamente.
A lembrança do ídolo poderia muito bem ter provocado uma peculiar saudade, aquela do que não se viveu. Uma deleitável sugestão do Rio das últimas décadas do século XIX, cenário de suas obras. E meu deslumbramento com o Real Gabinete Português de Leitura, esplêndida biblioteca outrora freqüentada pelo escritor, poderia ter-lhe esboçado os contornos, sentado à mesinha de madeira, enfiado num livro.
Nada, contudo. Nenhum delineamento da franzina figura. Tampouco de qualquer outro vestígio da antiga capital. A realidade não cedeu lugar à fantasia alguma.
Não que eu esperasse uma repentina configuração daquela época aos meus olhos. Nem que meu passeio tenha sido menos divertido pela ausência de um Rio imaginário.
Apenas isto: mais sedutor que o passado legítimo é um outro que o poderia ter substituído.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Férias no Quilombo

Descer do ônibus e travar o primeiro contato com o frio serrano. Vestir o moletom e, malas às costas e ao peito, começar a percorrer a estrada de terra que leva à fazenda. Ser invadido pelo ar gelado ao respirar e não saber dizer se boa ou ruim a sensação por ele provocada. E sentir o chão irregular por debaixo das solas delgadas dos tênis, ao caminhar sem outra iluminação que das estrelas e da lua crescente.
Chegar à casa dos tios e ser surpreendido pelos cheiros mesclados de cana-de-açúcar triturada e do curral. Ser recebido pelo cachorro e lhe acariciar o pêlo emaranhado. Ligar para os pais, do telefone de discar.
Sentar-se à boca do fogão à lenha para ler, ou simplesmente para quentar fogo. Embriagar-se com as chamas e com a brasa e descobrir que, por um tempo que não se sabe quantificar, passou-se desocupado de pensamento algum, e se despertou como que de um transe.
Ouvir sempre as mesmas histórias, sem delas nunca se cansar. E rir numa vez mais que noutra, até atingir uma contração abdominal às margens da dor, que de dor nada realmente tem.
Comer pão com queijo branco e tomar iogurte caseiro com groselha. E sucos, de laranja ou limão rosa, recém apanhados do pé. E os refrigerantes no copo de alumínio, que faz deles outros, um tanto melhores.
Deitar-se na rede com o bebê ao colo e sondar inutilmente a impressão que se lhe causa. Ouvir da varanda os gritos e risos das crianças e com elas brincar de esconde-esconde.
Cumprimentar o camarada que volta do bananal com a carroça repleta de cachos e ajudá-lo a descarregá-la.
Subir ao pasto para ler e aproveitar o sol que por lá ainda se debruça, depois de já se ter retirado do gramado. Ter a atenção desviada da leitura para a contemplação dos bezerros e das galinhas-d'Angola contra o poente.
Rachar lenha. Apanhar o machado e golpear violentamente a madeira, precisamente onde se a queria ferir. Revelar e satisfazer como que uma virilidade latente, que não tem vez na cidade.
Não perceber o decorrer dos dias até o momento de se despedir dos tios, aos quais se reservam carinho e admiração singulares e aos quais não se consegue expressar a tamanha gratidão que se lhes tem, senão pelos beijos e abraços e lembranças.