sexta-feira, 18 de julho de 2008

Férias no Quilombo

Descer do ônibus e travar o primeiro contato com o frio serrano. Vestir o moletom e, malas às costas e ao peito, começar a percorrer a estrada de terra que leva à fazenda. Ser invadido pelo ar gelado ao respirar e não saber dizer se boa ou ruim a sensação por ele provocada. E sentir o chão irregular por debaixo das solas delgadas dos tênis, ao caminhar sem outra iluminação que das estrelas e da lua crescente.
Chegar à casa dos tios e ser surpreendido pelos cheiros mesclados de cana-de-açúcar triturada e do curral. Ser recebido pelo cachorro e lhe acariciar o pêlo emaranhado. Ligar para os pais, do telefone de discar.
Sentar-se à boca do fogão à lenha para ler, ou simplesmente para quentar fogo. Embriagar-se com as chamas e com a brasa e descobrir que, por um tempo que não se sabe quantificar, passou-se desocupado de pensamento algum, e se despertou como que de um transe.
Ouvir sempre as mesmas histórias, sem delas nunca se cansar. E rir numa vez mais que noutra, até atingir uma contração abdominal às margens da dor, que de dor nada realmente tem.
Comer pão com queijo branco e tomar iogurte caseiro com groselha. E sucos, de laranja ou limão rosa, recém apanhados do pé. E os refrigerantes no copo de alumínio, que faz deles outros, um tanto melhores.
Deitar-se na rede com o bebê ao colo e sondar inutilmente a impressão que se lhe causa. Ouvir da varanda os gritos e risos das crianças e com elas brincar de esconde-esconde.
Cumprimentar o camarada que volta do bananal com a carroça repleta de cachos e ajudá-lo a descarregá-la.
Subir ao pasto para ler e aproveitar o sol que por lá ainda se debruça, depois de já se ter retirado do gramado. Ter a atenção desviada da leitura para a contemplação dos bezerros e das galinhas-d'Angola contra o poente.
Rachar lenha. Apanhar o machado e golpear violentamente a madeira, precisamente onde se a queria ferir. Revelar e satisfazer como que uma virilidade latente, que não tem vez na cidade.
Não perceber o decorrer dos dias até o momento de se despedir dos tios, aos quais se reservam carinho e admiração singulares e aos quais não se consegue expressar a tamanha gratidão que se lhes tem, senão pelos beijos e abraços e lembranças.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Braços

Sempre que punha os olhos nos braços de D. Severina, Inácio se esquecia "de si e de tudo". Verdade mesmo, prescindia da presença de D. Severina para entrar a devanear, uma vez que o jovem, protagonista do conto "Uns Braços", de Machado de Assis, andava com tão bonitos braços já "impressos na memória".
O ar distraído de Inácio levou D. Severina a desconfiar de um princípio de paixão. Suposição imediatamente repelida, pois que se tratava de uma criança. Que nada! A condição de criança desacreditaria os sentimentos do garoto, que já contava quinze anos, e a livraria de enfrentar a convivência com um seu cativado.
Criança ou não, Inácio a surpreendeu sobremaneira. Tanto que, num dia em que o menino dormia, D. Severina dele se aproximou e lhe deixou um beijo na boca. Beijo este, aliás, com que Inácio sonhava, precisamente no momento em que verdadeiramente acontecia!
A concomitância entre sonho e realidade jamais se revelaria a Inácio, que, sem saber que se enganava, exclamava ter sido "um simples sonho" o que realmente lhe ocorrera. Sorte de Inácio, que do beijo assim não se lembrava com saudades.
Também eu tenho cá uns braços de que me lembrar. Belos e fortes, da mesma textura que o mais nobre dos tecidos e por tecidos esculpidos.
Diferentemente de Inácio, porém, consegui passar da contemplação ao usufruto dos braços de meus sonhos despertos. Era abraçar e não querer mais soltar. E percorrer os braços todos com as pontas de meus dedos, desejoso de retribuir o prazer que me proporcionavam.
E minha sorte é outra, pois que deles, dos braços, e dos beijos, lembro-me com saudades.