quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Cinelândia

Os tipos são os mais diversos, descontraídos ou carrancudos, saudáveis ou moribundos, asseados ou imundos, discrimináveis até que se instala o tumulto à hora do almoço, a partir do qual o cuidado se desvia das faces para os pés, nos quais não se quer pisar.
Perambulando pelas imediações da Cinelândia, alcanço a rua do Ouvidor, que, por constar da literatura de Machado, dele faz com que eu me recorde prontamente.
A lembrança do ídolo poderia muito bem ter provocado uma peculiar saudade, aquela do que não se viveu. Uma deleitável sugestão do Rio das últimas décadas do século XIX, cenário de suas obras. E meu deslumbramento com o Real Gabinete Português de Leitura, esplêndida biblioteca outrora freqüentada pelo escritor, poderia ter-lhe esboçado os contornos, sentado à mesinha de madeira, enfiado num livro.
Nada, contudo. Nenhum delineamento da franzina figura. Tampouco de qualquer outro vestígio da antiga capital. A realidade não cedeu lugar à fantasia alguma.
Não que eu esperasse uma repentina configuração daquela época aos meus olhos. Nem que meu passeio tenha sido menos divertido pela ausência de um Rio imaginário.
Apenas isto: mais sedutor que o passado legítimo é um outro que o poderia ter substituído.

5 comentários:

Tutank Akenaton disse...

O mundo é o palco, e os homens são os atores.
Seja o diretor, porque eu já sou o escritor. O escritor é o mais hipócrita, o mais sacana, o mais verdadeiro, o mais mentiroso. Não liga para as críticas, se esgueira pelas frestas da podridão quotidiana.
Os tipos do cinema são criações de escritores, não de diretores, embora este último tenha muito mais poder.

Bernardo disse...

ei, "escritor", lemme see what you've got, =P

Tutank Akenaton disse...

Nada de especial eu tenho. Considero-me um escritor quase que erroneamente, mas é que eu queria me sentir assim, pensar que o mundo tem uma volta, e mais outra, e talvez as estações sejam como o carretel dos filmes do velho cinema de película, que têm uma nova esperança em um novo começo.
Quem não gostaria de se sentir importante, sentir que não é mais um "en passant" por essas terras.
Tenho jogado debaixo de minha cama alguns rabiscos, idéias incompletas, incômodas de tão ruins; por isso as deixo escondidas no escuro, para ver se elas melhoram.
Como eu disse, nada tenho de muito bom, importante, ou então que alguém já tenha visto. Escrever sobre coisas intimistas e colocá-las em algum lugar acessível é ter coragem.
Não sei se consigo fazer isso. Talvez eu abra um blog, para mentir sobre algumas coisas. Por quê mentir? Porque a vida é tão emocionante quanto lavar o chão de um banheiro público: a emoção só vem nas escorregadas.
Na minha fantasia, escritor. E não quero sair da fantasia muito cedo...

Tutank Akenaton disse...

"Não há mais pílulas para dormir, nem para a dor que a filosofia da devastação mental impõe à força das lembranças, relembrando o que foi, e cogitando como teria sido, se as coisas ruins e inevitáveis não acontecessem. O último remédio parece ser dormir, mas este também há de ter suas limitações. Mas não na morte, onde se dorme na ausência de tempo.
Goethe, Lorde Byron, Álvares de Azevedo. Alemão, Inglês e Brasileiro. Três escritas sofredoras, onde o mal é apenas um adjetivo menor de um mundo caótico e sombrio. Eles sintetizaram perfeitamente os três maiores desejos de um homem: vinho, mulheres e a morte poética, o suicídio com estilo. E na fantasia destes três demônios fundamentais do homem, o Diabo era uma personagem de gala e elegância teatral, mágica. A morte precoce como embalsamadora da juventude, as lembranças ainda continuariam jovens na mente dos viventes.
Conceitos psicanalíticos no mais gótico dos séculos. Ninguém deu atenção a eles. Ninguém lembrou que é natural o homem procurar drogar-se; a única diferença é que o ópio legalmente vendido foi proibido um século depois, ele e seus companheiros festeiros então foram substituídos por tantas outras coisas. O conceito fundamental do homem é que o vício sempre vence, pois ele é inerente ao conceito de “humano”, e traduz-se nos arcabouços do cérebro. O suicídio é o último vício, a vontade incontrolável de controlar a mente e o próprio livre-arbítrio."
Este é o rabisco mais decente que encontrei debaixo de minha cama...

Bernardo disse...

parece-me que sua cama está monopolizando uma produção que valeria publicação! eu tb tenho as idéias incompletas de que vc fala, mas, ao contrário de vc, não espero que elas melhorem com o escuro do debaixo de cama alguma. elas só se completarão se forem trabalhadas e se nós as submetermos à impressão alheia. qto a sair da fantasia: vc saiu dela assim que nela se percebeu!

eu gostei de seu texto. lembrou-me de Herman Hesse, autor de que até gosto, embora não se compare a outros como Machado (sempre ele), Calvino (As Cidades Invisíveis são imperdíveis, O Castelo dos Destinos Cruzados é fabuloso), Graciliano (cujas cenas de angústia arrasam com as de Hesse) e Mario de Andrade (o que menos li dos quatro, porém cujos contos "Vestida de Preto" e "Peru de Natal" bastam para colocá-lo entre os maiores de todos).
Publique. Faça um blog. O vício não vence sempre.